O Porão
A primeira música que ouviu naquele sábado não lhe deixou esquecer a noite. “Será que vou te ver hoje à noite, num trem no centro da cidade?”
Em sua cabeça, já tinha tido todo tipo de pensamento sobre o que poderia acontecer naquela noite. Sabia que corria o risco de ficar esperando na estação, como uma tola. Para isso, tinha até um “plano b”. Mas estava decidida. Tinha de conhecer o território dele. Só assim para conhecê-lo de fato.
No final da tarde, juntou uma muda de roupa, maquiagem, escova de dentes, e colocou na bolsa. Arrumou-se como de costume, mas com uma estranha sensação. Nunca se sentira assim antes. Vestir-se, perfumar-se, e Ter a certeza de que poderia ser tudo em vão... Era como executar um ritual mecanicamente, sem qualquer satisfação. Era como se estivesse indo para um julgamento, uma entrevista de emprego, um exame de seleção, um exame de escola... tudo, menos um encontro amoroso. E a música na cabeça o dia todo: “Será que vou te ver hoje à noite, num trem no centro da cidade?”
Esforçou-se para não perder a hora, mas mesmo assim atrasou-se um pouco. Manteve os olhos abertos no metrô. Podia ser que se encontrassem no meio do caminho, como fora na primeira vez que saíram juntos. E a tensão aumentava a cada estação.
Quando chegou ao seu destino, doíam-lhe o estômago e a bexiga. E nenhum banheiro por perto. A estação era cercada por residências. Sim, talvez a única estação cercada por residências! Os minutos pareciam horas... Bem, só lhe restava decidir até que hora esperar. Até as nove? As dez?
Após uns vinte minutos de espera, o “plano b” foi engavetado. Ele acenou de longe. Talvez tivesse medo que ela fosse embora... Cumprimentou-a com um beijo no rosto. Seguiram para a casa dele. Local íngreme. Ela tinha vindo com um salto apropriado, como ele lhe pedira. Cada passo parecia uma eternidade.
Chegaram à casa. Uma rua com muitos sobrados. Pararam diante de um deles, desceram para a parte baixa da casa. Um porão, na realidade. Um porão onde ele guardava todas as dúvidas, todas as incertezas, todas as dores de sua vida. Um porão de adiamentos. Um porão que ele havia transformado em algo habitável, confortável, limpo, aconchegante até. Como sua vida. Quem o visse, teria dele a melhor imagem: bonito, educado, de boa expressão. Tudo certinho. Aparentemente.
Mostra-lhe a casa, acomoda-a na sala. Mostra fotos e mais fotos. Fotos de amigos. Fotos de família. Fotos de ex-namoradas... “Essa aqui você namorou quando?” “Ah, uns seis meses atrás...” A frase caiu-lhe como um soco. Seis meses antes estavam juntos.
Pedem comida. Pizza. Ele fala com ela como se estivesse recebendo uma visita em sua casa. Sim, o que parecera amor virara gentileza. Simples gentileza.
Fazem amor como duas pessoas que não se pertencem. E ele adormece. Fica a cargo dela desligar a televisão, apagar as luzes, colocar a camisola para alguém que não vai vê-la...
Não dorme como ele. Tem pesadelos. Na verdade, os pesadelos dele... Vê os fantasmas que o assombram: os amorosos, os familiares, os ancestrais... Caminha no meio da noite pelo território dele. Um porão de sentimentos abortados.
Na manhã seguinte, não pede mais que duas xícaras de café bem forte. Ali não haveria mais alimento algum para ela. De espécie alguma.
Caminham sob o sol os últimos passos de sua história. Ao menos ela agora sabia porque era melhor desistir. Um porão trancado no coração daquele homem. Sem chave para abrir.
Genial, Maia!
ResponderExcluirAqui, a prosa que flui!