Ser
(Poemas da raça humana)
Cada dia morre um anjo
Cada ser se guarda num canto
em cada ilha guarda um encanto
de sentir sufocado
na dor do espanto
o velho pranto, num pano
encerrado, inundado
do ardor do desencanto.
E quando as trombetas avisam
os sentidos se paralisam:
-Guarda a emoção em canto
que um anjo comporta,
se um pequeno tempo
te bate à porta!
Corta-lhe as asas qual simpatia
que inunde e invada
outra ilha vazia
e descubra outros anjos
que o corpo escondia:
o amor, o ódio e alegria
se consumam na glória
de sentimento derramado
que mantenha armado
amarrado com cuidado
secando a seiva
do ser alado
pois que padeça
do oculto pecado
de deixar-se fluir, encantado
e espalhe no mar
todo o emaranhado
que o cerca na ilha,
acorrentado.
Que não goze o gosto
de ver exposto o rosto
do anjo da ilha ao lado.
E se guarde num legado
a quem o tenha criado,
santificado.
E o chamou sentimento guardado,
encanto morto, eternizado.
24-08-03
Juventude
A motocicleta me ilumina
com seus olhos cor de velocidade.
Não tem tempo, nem idade:
só vontade.
24-10-83
Máquina
O automóvel desliza na praia
suave, sozinho
Perdido
na imensidão do mar.
Lá fora, a canção das ondas,
Genitora
Aqui dentro a canção dos homens,
destrutiva.
09-12-83
Partida
Velha casa
velhos móveis
velha música
velhos sons
velhas vidas
sonhos idos
cantos findos
vida ilusão
18-12-83
As luzes do lado norte
Em cada lado da selva
há um corte
um rasgo de progresso forte
Luzes da química, da eletrônica,
da morte
corações de propaganda e alquimia
e nossos corações à revelia
passam desapercebidos, contundidos
seguem paralelamente desviados
para o lado de um destino só.
08-01-84
Amor-Noturno
No meio da noite
clamo por ti
proclamo-te
meu inteiro amar
meu único cantar
na canção do amor
sem verso e sem som.
21-02-84
Uma hora, duas horas
três segundos
A vida passa
o tempo fica
O tempo passa
a vida fica
Um deles
tem que passar
O outro
passa sozinho
Quatro horas, cinco horas
seis segundos
A vida pulsa
no coração do tempo
O tempo cabe
na extensão da vida
O tempo conta
a vida passa
A vida conta
e o tempo passa
Dez horas, Dez horas
uma hora
Horas certas
vidas erradas
vidas perdidas
horas guardadas
zero hora
zero hora
zero hora ...
O tempo começa
a vida
acaba.
07-04-84
Marcha
Às vezes parecemos
exércitos de robôs
caminhando, cegos
construindo, construindo
demolindo, demolindo
vagando sob a luz
da estrela divina.
01-05-84
Papel-Eletrônica
Cenário de papel
programa de papel
televisão de papel
Encanto de papel
beleza de máquina
mentira cor de céu
Sorriso branco pálido
telespectador inválido
linda imagem cruel.
19-05-84
Morro da Serra de Santos
As casas no morro
As luzes no morro
os lares onde morro
de fome, de frio
Na favela, em coro
acende-se a vela
em honra do dia santo
A prece cresce
são seis hras
são dois dias
são cem vidas
Lá embaixo não acho
lugar onde brilhar
embaralho, desencaixo
a visão sem fim
E cada edifício é um facho
de força sobre mim.
22-07-84
Elos sentidos
Não sei onde encontrar
os elos de meu mundo
só sei que estão
entre meus pés,
minha cabeça e meu coração.
27-12-84
Mudança
Monumento de prata e cobre
relógio que me recobre
na luz nova
de cada manhã
ainda estarás vivo,
amanhã?
12-01-85
Versinho de um minuto
O relógio me guarda
a hora e o dia
porque nunca
sei quando sou.
12-01-85
Caracóis
Somos delicados caracóis
correndo com nossas casas
duras e rijas
atrás dos ombros
visando a liberdade
vazando a interioridade
e por dentro, os escombros
aos poucos, roucos
refazem a fragilidade
gritam a desconformidade
do nosso escorrer.
18-01-85
Papel passado
Velhos anúncios
velhos jornais
velhos destinos
que não se alugam mais...
10-02-85
Devaneios de árvores
Vivemos como árvores
com pés presos ao solo
notas e ouros nos enfeitam
floreiam o colo
e os pássaros nos tocam, nos
deslocam
aos nossos devaneios de verão.
(Árvores sós e lindas
têm devaneios no chão ...)
23-02-85
Amigos silenciosos
Alguns seres são
nossos ídolos de bronze
de barro e papel
presos nas paredes
soltos nas telas
Não lhes sorvemos
senão o valor
Não lhes ouvimos
que as aventuras
Mas lhes sentimos
mais vida e morte.
“Artistas são
seres vivos nas paredes
e fãs são
ídolos mortos no chão”.
13-03-85
Protesto (sem) poema
Sisudos
saiam da cama
saiam da calma
saiam dos bares
soltem dos bancos
quebrem o copo
vivam
revivam o esquema
revirem o problema
invertam o fonema
respirem, transpirem
rasguem o verso mal visto
o investimento
o revestimento em vão
de nossos vidros
ah, vivos...
não há parágrafo
nem há linha
tampouco poeminha
só vontade minha
e sua, então (?)
14-03-85
Pre-visão
Hoje é um dia fértil
crescerão árvores imensas
Amanhã não sei
se estarão de pé.
14-03-85
Histórias
Vê e ouve
os relatos que te contam
e saberás
quem somos (?) então.
25-03-85
Liberdade (?)
Pareço livre
de minhas cadeias
mas não sei
o que fazer
do sangue que corre
em minhas veias.
10-04-85
Luta Livre
Todo dia
há uma luta
preparada pra nós
junto da porta.
Joguemos a luva
e regressemos dela
(De preferência
com sangue)
como sempre.
17-04-85
Nós
quero entrar dentro
da concha, do caracol,
ser uma ostra só
tu não sabes de mim
nem mesmo o sol...
21-04-85
Ser Camaleão
Já estive triste
já tive medo
já segui só
já corri recusada
já naveguei no nada
(assustada)
Não nos parecemos, agora?
Hoje tenho um casaco
de cada criatura
que vivi.
Ou temos.
23-04-85
Defesa
A cabeça carece
de momentos líricos
apesar do café
da cerveja
do teto traído, destruído
do tempo atulhado
uma linha
sobeja.
19-04-85
Diante da cruz
Ouço várias verdades
três mil histórias
tristes memorias
figuro em todas faces
dos limites do meu lar
mas, no exterior
onde a linguagem é outra
e os mortos são os mesmos
até menos
a sombra da luz,
creia, é uma cruz.
24-04-85
Fabricandos
Delineamo-nos andróides (de fibras)
o intelecto é maquina
e as emoções são sementes.
Ferramentas leves do tempo.
Operários. Todos.
12-05-85
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