Beatles & Stones
Era um garoto, que como eu, amava os Beatles... e
eu, os Rolling Stones. Nos conhecemos por causa de música, rock and roll, pra
ser mais exata. Começamos uma guerra de gravadores (sim, gravadores!) e
acabamos nos aproximando, nos conhecendo, nos apaixonando... Tudo seria
perfeito, se não fosse um pequeno detalhe: quatro anos nos separavam, quatro
anos que faziam de mim uma criança comparada a ele.
Mas os quatro anos de diferença entre nós para ele
nada pesavam. Nem pra mim. Não víamos a carteira de identidade, víamos um ao
outro. Para mim, ele se parecia com Al Pacino (bem, o sangue italiano também
corria-lhe nas veias). Ele era bem diferente dos garotos que eu conhecera no
colégio até então. Trabalhava, estava conseguindo a carteira de habilitação, já
pensava em comprar um carro. E o mais surpreendente e insano de tudo: falava em
casar comigo. Hoje eu diria que ele era louco... como pode um jovem de dezoito se
apaixonar por uma menina de quatorze anos e dizer pra ela, diante dos seus
amigos, seus irmãos e dos pais dela, que vai casar com ela? Como pode alguém
sentir algo tão forte por alguém com quem nunca passou dez minutos à sós? E o
que é mais incrível, ser correspondido... A loucura dele, ou melhor, a nossa,
ignorava todos ao redor. Na minha cabeça sequer passava o que eu perderia se me
casasse tão jovem, e na dele também não. E como na canção dos Carpenters ele
foi se tornando para mim um sonho que parecia cada dia mais próximo: eu ia me
casar, ser feliz com um homem bonito, charmoso, alegre, em que eu sabia que
podia confiar. E como na canção dos Carpenters eu ia deixar pra trás todas as
tristezas que aquela adolescente podia sentir.
Poucos dias se passaram até que o sonho explodisse
como o Vesúvio em erupção. A irmã dele e dois primos vieram me conhecer, vieram
saber quem tinha virado a cabeça do caçula da família. Minha família os recebeu
muito bem, num hotel tipo estância, mas eu não tive a menor chance. O massacre
foi inevitável, afinal “que ideia insana era aquela de casar com uma menina que
os pais nem deixam ir ao cinema com você?” “Acorda, rapaz. Ficou doido?” Do meu
lado, a cara fechada do meu pai se alternava com os acessos de choro da minha
mãe, que eu só fui entender mais tarde, depois que tudo acabou. E tudo acabou
da maneira mais estúpida possível. “Amanhã eu te ligo.”
Levei mais de um ano pra me recuperar da perda do
meu “Al Pacino”. No dia dos meus quinze anos, o meu coração ainda doía.
Insanamente eu ainda desejava que o telefone tocasse e eu fosse ouvir aquela
voz de novo. Mas depois do Vesúvio, só sobraram ruínas. Sentimentos
paralisados, como pessoas inertes diante de um destino inevitável. Apenas um
documento restara: uma fita gravada com Carpenters, Beatles e Simon and
Garfunkel. Nome, local e data do fato. E por ironia do destino, era a data do
aniversário de casamento dos meus pais. Passou muito tempo até que eu tivesse
vontade de apagar as gravações. Jim Morrison e sua Oração Americana apagaram
meu sonho de adolescente. E a cantora dos Carpenters já tinha também partido.
Ela também sonhara com um casamento perfeito, ela também sonhara que amor era
algo que se pudesse alcançar com a mão.
O mais inacreditável de tudo foi ter reencontrado
meu Al Pacino nesse meio tempo. Eu estava na praia, com meus irmãos e meu
namorado. E ele, com a esposa (ou noiva talvez) e mais um casal. “Com tanto
lugar na praia por que é que nós tínhamos que ficar bem aqui?” Ele estava muito
mudado, meus irmãos não o reconheceram. Mas eu reconheceria aquele jeito de
segurar o cigarro e fumar em qualquer lugar do mundo. Assim que ele percebeu
que eu estava ali, enterrou a cabeça na leitura. Depois de uns minutos, foi
para a beira-mar e lá ficou até a hora de nós irmos embora. E adivinhem para
quem ficou a tarefa de olhar as esteiras deles? E adivinhem quem teve de
avisá-los que estávamos indo embora? “Bem, rapaz, a menina amadureceu.” “Achou
que ia ficar menina pra sempre?” “Achou que nunca mais ia vê-la?”
Bem, outras árvores cresceram sobre as ruínas do
Vesúvio. Quando a cantora dos Carpenters partiu, a lembrança foi inevitável. Morreu
de fome de amor. Morreram de novo sonhos que já tinham morrido. Mas eu segui,
fui compreendendo, aprendendo, vivendo tudo que esperava por mim e que eu pudesse
alcançar com as minhas duas mãos.
E o garoto que amava os Beatles também partiu. Soube
no noticiário da meia-noite. Não fora
bala de metralhadora, não fora a guerra do Vietnã. Mas fora igualmente triste.
E eu, que tinha toda a certeza do mundo que nunca mais iria vê-lo... Sei que
sua família deve lembrar sempre o quanto ele foi bom pai e bom marido, mas eu
me lembro que ele amava os Beatles... e eu, os Stones.
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