sexta-feira, 8 de janeiro de 2016

Beatles & Stones

Beatles & Stones

Era um garoto, que como eu, amava os Beatles... e eu, os Rolling Stones. Nos conhecemos por causa de música, rock and roll, pra ser mais exata. Começamos uma guerra de gravadores (sim, gravadores!) e acabamos nos aproximando, nos conhecendo, nos apaixonando... Tudo seria perfeito, se não fosse um pequeno detalhe: quatro anos nos separavam, quatro anos que faziam de mim uma criança comparada a ele.
Mas os quatro anos de diferença entre nós para ele nada pesavam. Nem pra mim. Não víamos a carteira de identidade, víamos um ao outro. Para mim, ele se parecia com Al Pacino (bem, o sangue italiano também corria-lhe nas veias). Ele era bem diferente dos garotos que eu conhecera no colégio até então. Trabalhava, estava conseguindo a carteira de habilitação, já pensava em comprar um carro. E o mais surpreendente e insano de tudo: falava em casar comigo. Hoje eu diria que ele era louco... como pode um jovem de dezoito se apaixonar por uma menina de quatorze anos e dizer pra ela, diante dos seus amigos, seus irmãos e dos pais dela, que vai casar com ela? Como pode alguém sentir algo tão forte por alguém com quem nunca passou dez minutos à sós? E o que é mais incrível, ser correspondido... A loucura dele, ou melhor, a nossa, ignorava todos ao redor. Na minha cabeça sequer passava o que eu perderia se me casasse tão jovem, e na dele também não. E como na canção dos Carpenters ele foi se tornando para mim um sonho que parecia cada dia mais próximo: eu ia me casar, ser feliz com um homem bonito, charmoso, alegre, em que eu sabia que podia confiar. E como na canção dos Carpenters eu ia deixar pra trás todas as tristezas que aquela adolescente podia sentir.
Poucos dias se passaram até que o sonho explodisse como o Vesúvio em erupção. A irmã dele e dois primos vieram me conhecer, vieram saber quem tinha virado a cabeça do caçula da família. Minha família os recebeu muito bem, num hotel tipo estância, mas eu não tive a menor chance. O massacre foi inevitável, afinal “que ideia insana era aquela de casar com uma menina que os pais nem deixam ir ao cinema com você?” “Acorda, rapaz. Ficou doido?” Do meu lado, a cara fechada do meu pai se alternava com os acessos de choro da minha mãe, que eu só fui entender mais tarde, depois que tudo acabou. E tudo acabou da maneira mais estúpida possível. “Amanhã eu te ligo.”
Levei mais de um ano pra me recuperar da perda do meu “Al Pacino”. No dia dos meus quinze anos, o meu coração ainda doía. Insanamente eu ainda desejava que o telefone tocasse e eu fosse ouvir aquela voz de novo. Mas depois do Vesúvio, só sobraram ruínas. Sentimentos paralisados, como pessoas inertes diante de um destino inevitável. Apenas um documento restara: uma fita gravada com Carpenters, Beatles e Simon and Garfunkel. Nome, local e data do fato. E por ironia do destino, era a data do aniversário de casamento dos meus pais. Passou muito tempo até que eu tivesse vontade de apagar as gravações. Jim Morrison e sua Oração Americana apagaram meu sonho de adolescente. E a cantora dos Carpenters já tinha também partido. Ela também sonhara com um casamento perfeito, ela também sonhara que amor era algo que se pudesse alcançar com a mão.
O mais inacreditável de tudo foi ter reencontrado meu Al Pacino nesse meio tempo. Eu estava na praia, com meus irmãos e meu namorado. E ele, com a esposa (ou noiva talvez) e mais um casal. “Com tanto lugar na praia por que é que nós tínhamos que ficar bem aqui?” Ele estava muito mudado, meus irmãos não o reconheceram. Mas eu reconheceria aquele jeito de segurar o cigarro e fumar em qualquer lugar do mundo. Assim que ele percebeu que eu estava ali, enterrou a cabeça na leitura. Depois de uns minutos, foi para a beira-mar e lá ficou até a hora de nós irmos embora. E adivinhem para quem ficou a tarefa de olhar as esteiras deles? E adivinhem quem teve de avisá-los que estávamos indo embora? “Bem, rapaz, a menina amadureceu.” “Achou que ia ficar menina pra sempre?” “Achou que nunca mais ia vê-la?”
Bem, outras árvores cresceram sobre as ruínas do Vesúvio. Quando a cantora dos Carpenters partiu, a lembrança foi inevitável. Morreu de fome de amor. Morreram de novo sonhos que já tinham morrido. Mas eu segui, fui compreendendo, aprendendo, vivendo tudo que esperava por mim e que eu pudesse alcançar com as minhas duas mãos.  
E o garoto que amava os Beatles também partiu. Soube no noticiário da meia-noite. Não  fora bala de metralhadora, não fora a guerra do Vietnã. Mas fora igualmente triste. E eu, que tinha toda a certeza do mundo que nunca mais iria vê-lo... Sei que sua família deve lembrar sempre o quanto ele foi bom pai e bom marido, mas eu me lembro que ele amava os Beatles... e eu, os Stones.


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