terça-feira, 28 de julho de 2009

Fortuna

Fortuna

Os navios chegaram ao nascer do dia. Quase silêncio... Canto dos pássaros. Um canto quieto, contido, quase triste. Tão furtivamente quanto aporta o navio, descarregam-se os mercenários. As armas vão à frente de suas cabeças, quebrando folhas e galhos. Caminham sem parada, como quem sabe exatamente aonde vai. Mata adentro. Mata adentro.
(...)
Dentro da mata. Um homem negro, alto, forte, ajoelha-se sobre uma pele de leão. Segura nas mãos um punhado de búzios. Sacode-os, deixa-os cair sobre a pele. Olha atentamente para a pele. Recolhe os búzios. Deixa-os cair de novo. Repete o ritual várias vezes, até que, cansado, resolve descansar um pouco. Envolve os búzios em um pedaço pequeno de pele e os coloca ao lado da pele de leão. Está sentado ao pé de uma árvore, é noite, e uma fogueira acesa bem próxima evita que animais cheguem perto. Uma mulher sai de uma cabana bem próxima e vem até ele. Ele está sentado no chão, os braços apoiados nos joelhos, olhando para o nada. Ela se ajoelha a seu lado. Tem o olhar apreensivo e preocupado que tem todas as mulheres de guerreiros. Ele balança a cabeça negativamente. Nada... nenhuma visão... nenhum sinal... nada... nenhuma pista sobre o futuro da tribo... nenhuma...
A mulher do guerreiro volta para a cabana. Não dormiu, não dormirá. Aguardará que ele venha com algum resultado. Sabe que eles tem todos sob sua guarda espiritual, que todos querem saber se a caça será boa na próxima estação, se as águas e as frutas serão abundantes. Devem saber o que esperar, a quem pedir, a quem agradecer... E para saber isso vão esperar a noite toda se for preciso.
(...)
Os mercenários já estão mais perto de seu destino. Já avistam as aldeias, mas não se aproximam. Vão se esconder feito bichos, para atacar como bichos, dando bote...
(...)
O guerreiro volta aos búzios. Volta e pergunta. Volta e pergunta. Insistentemente pergunta... Sua aflição vai aumentando e as forças de seu coração parecem se exaurir. A dor toma conta de seu peito, uma dor tão lancinante, como se uma fera estivesse mordendo seu corpo. Uma dor que parece que nunca mais vai abandoná-lo...
O dia nasce. Os raios do sol nunca lhe causaram tristeza, mas agora causam. Sua companheira vem ao pé da árvore. Ele sente vontade de chorar, mas se controla. Logo todos vão chegar e ele não tem resposta nenhuma, nenhuma... E isso nunca acontecera antes. O guerreiro leva as mãos ao rosto, mas quando as tira o que vê é exatamente o que mais teme. Não está num sonho. Não está num pesadelo. È tudo verdade. Será que os Deuses os abandonaram???????
O guerreiro não sabe o que fazer. Os outros chegam e querem saber o que viu. Ele diz que tentou a noite toda e ainda não viu nada. Pede que esperem mais. Vai tomar um banho de cachoeira antes de recomeçar. Atordoado, recolhe suas coisas e sai apressado.
Os homens e mulheres mais maduros ficam assustados. Correm uns até a cabana dos outros. As noticias não soam boas. Sabem o que significa não ter uma só palavra dos céus. Algumas mulheres choram, outras se recolhem para rezar. Alguns homens pegam as armas. Outros vão se juntar ao grande guerreiro na cachoeira.
(...)
Os mercenários levantam ancora. Já fizeram a primeira parte de seu serviço odioso. A tribo acorrentada nos porões do navio, junto com outra tribo próxima. Muitos foram mortos. Não terão funeral digno de heróis. O grande guerreiro queria Ter morrido com eles. Pergunta-se por que os Deuses o pouparam. Pergunta-se por que os outros não se revoltam e o matam ali mesmo, por que não o enforcam com as correntes... Tudo o que sente dentro de si é que não conseguiu salvar seu povo, não conseguiu salvar seu povo... esse pensamento perduraria em sua cabeça até o fim de seus dias.
A companheira do grande guerreiro diz a ele que todos precisam dele, que ele sempre será o chefe deles, não importa onde estejam. E assim será.
(...)
A tribo se reúne à noite, em volta da fogueira. Não possuem mais lanças, nem escudos, nem peles de animais. Vestem-se com roupas de pano, que lhes cobrem as pernas, o dorso, às vezes também os braços. Agora os brancos estão dormindo e eles podem se reunir, como faziam em sua terra. O chão forrado com folhas, sentam em tocos, fumam cachimbos de madeira, não tão bonitos nem enfeitados com penas, como os que costumavam fazer, mas de formato semelhante. Durante o dia têm de falar a língua dos brancos, mas à noite conversam em volta da fogueira, falando sua língua. Chamam-se pelos seus nomes, sorriem e cantam as canções que a pouca alegria permite. Sentam-se em tocos de madeira, como faziam na floresta. Os brancos não lhes deixam ter tambores para tocar, mas não podem impedi-los de se reunir e conversar. Os pequenos escutam o linguajar dos mais velhos, aprendem com eles. Amanhã terão de falar a língua dos brancos.
Tocar a terra e senti-la com as mãos faz com que se lembrem de sua aldeia. O cheiro desta terra que habitam agora não é o mesmo, nem o calor, nem a espessura. Os brancos não são livres. Vivem trancados em casas, em terras com cercas, e suas armas são frias e pesadas. Os brancos não sabem o que é liberdade, por isso escravizam os negros. Rezam juntos, mas não são uma tribo, moram distantes uns dos outros, muito distantes. Não sabem dançar nem sentir alegria, como o povo da floresta sentia. Suas danças e suas músicas não são alegres como as do povo da floresta. Por isso, hoje, o povo da floresta canta mais triste também. Porque vive numa terra triste. Mas ainda é um povo. E sempre será.
(...)
A companheira do grande guerreiro já não pode mais andar. Os anos de trabalho roubaram-lhe as forças, e ela passa os dias e noites na cama. Trabalha ainda com as mãos, não quer ficar parada, diz que o dia não passa se ficar só olhando pela janela. As mulheres mais novas vem conversar com ela, vem ajudá-la a se cuidar e se alimentar, vem pedir conselhos e ensinamentos. O dia passa logo assim. Seu guerreiro também a ajuda. Apesar da idade avançada, ele a carrega no colo. As forças não o abandonaram, deve ser uma compensação dos Deuses. Ela não pode se unir aos outros todas as noites porque as dores nem sempre deixam, mas quando o faz, vai nos braços de seu guerreiro. Quando ele chega com ela nos braços, todos ficam em silêncio, abrem caminho, e preparam um assento para ela. Vem pedir a benção dos dois. Ela nem acredita que tanto tempo passou, que não é mais jovem, que estão lhe pedindo a benção, que ela agora é senhora. Para ela, será sempre como aqueles dias da floresta, em que os homens matavam as feras com suas lanças e seus escudos. Para ela, seu guerreiro será sempre Rei. O sol vai brilhar acima da copa alta das árvores. Ela sabe que um dia vai partir, e então poderá voltar à sua terra e nadar em sua cachoeira, junto a seus Deuses amados.
(...)
O grande guerreiro coloca uma flor na terra. Veio visitar sua amada companheira. Fala com ela, conta-lhe tudo o que está acontecendo com os filhos da tribo. Pede a ela que volte. Agradece a ela por todos os dias junto dele. Todos os dias.
(...)
Muito anos se passam antes que o grande guerreiro parta. Ele parte sentindo-se ainda culpado por sua tribo ter sido rendida. Parte sem compreender porque os Deuses assim quiseram. Parte sem saber a importância que tinha para os filhos da tribo. Parte sem saber que eles não seriam mais um povo se não tivessem seu Rei para reverenciar. E isso, os brancos não lhes tiraram.

domingo, 5 de julho de 2009

O Porão

A primeira música que ouviu naquele sábado não lhe deixou esquecer a noite. “Será que vou te ver hoje à noite, num trem no centro da cidade?”
Em sua cabeça, já tinha tido todo tipo de pensamento sobre o que poderia acontecer naquela noite. Sabia que corria o risco de ficar esperando na estação, como uma tola. Para isso, tinha até um “plano b”. Mas estava decidida. Tinha de conhecer o território dele. Só assim para conhecê-lo de fato.
No final da tarde, juntou uma muda de roupa, maquiagem, escova de dentes, e colocou na bolsa. Arrumou-se como de costume, mas com uma estranha sensação. Nunca se sentira assim antes. Vestir-se, perfumar-se, e Ter a certeza de que poderia ser tudo em vão... Era como executar um ritual mecanicamente, sem qualquer satisfação. Era como se estivesse indo para um julgamento, uma entrevista de emprego, um exame de seleção, um exame de escola... tudo, menos um encontro amoroso. E a música na cabeça o dia todo: “Será que vou te ver hoje à noite, num trem no centro da cidade?”
Esforçou-se para não perder a hora, mas mesmo assim atrasou-se um pouco. Manteve os olhos abertos no metrô. Podia ser que se encontrassem no meio do caminho, como fora na primeira vez que saíram juntos. E a tensão aumentava a cada estação.
Quando chegou ao seu destino, doíam-lhe o estômago e a bexiga. E nenhum banheiro por perto. A estação era cercada por residências. Sim, talvez a única estação cercada por residências! Os minutos pareciam horas... Bem, só lhe restava decidir até que hora esperar. Até as nove? As dez?
Após uns vinte minutos de espera, o “plano b” foi engavetado. Ele acenou de longe. Talvez tivesse medo que ela fosse embora... Cumprimentou-a com um beijo no rosto. Seguiram para a casa dele. Local íngreme. Ela tinha vindo com um salto apropriado, como ele lhe pedira. Cada passo parecia uma eternidade.
Chegaram à casa. Uma rua com muitos sobrados. Pararam diante de um deles, desceram para a parte baixa da casa. Um porão, na realidade. Um porão onde ele guardava todas as dúvidas, todas as incertezas, todas as dores de sua vida. Um porão de adiamentos. Um porão que ele havia transformado em algo habitável, confortável, limpo, aconchegante até. Como sua vida. Quem o visse, teria dele a melhor imagem: bonito, educado, de boa expressão. Tudo certinho. Aparentemente.
Mostra-lhe a casa, acomoda-a na sala. Mostra fotos e mais fotos. Fotos de amigos. Fotos de família. Fotos de ex-namoradas... “Essa aqui você namorou quando?” “Ah, uns seis meses atrás...” A frase caiu-lhe como um soco. Seis meses antes estavam juntos.
Pedem comida. Pizza. Ele fala com ela como se estivesse recebendo uma visita em sua casa. Sim, o que parecera amor virara gentileza. Simples gentileza.
Fazem amor como duas pessoas que não se pertencem. E ele adormece. Fica a cargo dela desligar a televisão, apagar as luzes, colocar a camisola para alguém que não vai vê-la...
Não dorme como ele. Tem pesadelos. Na verdade, os pesadelos dele... Vê os fantasmas que o assombram: os amorosos, os familiares, os ancestrais... Caminha no meio da noite pelo território dele. Um porão de sentimentos abortados.
Na manhã seguinte, não pede mais que duas xícaras de café bem forte. Ali não haveria mais alimento algum para ela. De espécie alguma.
Caminham sob o sol os últimos passos de sua história. Ao menos ela agora sabia porque era melhor desistir. Um porão trancado no coração daquele homem. Sem chave para abrir.
Fastio

Estou cansada. Não me sento em um sofá, mas estou cansada... Estou cansada de tudo o que me consome. Estou cansada do tempo do relógio. Estou cansada do tempo do céu. Cansada do calor. Cansada das músicas no rádio. Cansada da caixa que fala, e por vezes em vão. Cansada dos problemas sem solução.
Também me canso de ir aos mesmos lugares, escutar os mesmos cumprimentos. Também me canso do gueto. Meus amigos não me cansam, mas e os demais? Ah, quanta falta a privacidade faz!
Ah, que chato! Estou virando bicho do mato... será?
Cansei da bagunça em excesso. Também cansei da arrumação. Cansei do silêncio em excesso. Também cansei da falação.
Só não cansei das palavras, minhas irmãs. As que nunca tive, com quem nunca briguei, de quem sempre emprestei tudo, as que sempre me criticam, mas com quem nunca me irritei.
Ah, Deus, por que minha cabeça gosta de trabalhar? Será doença? Falta de vacina? Por que preciso caminhar e pensar? Vou fazer de minha revolta meu motim, meu mote. Quem sabe me sinto mais forte, diante de tudo sempre assim.