domingo, 7 de fevereiro de 2010

Pequeno Raio-de-Sol

Pequeno Raio-de-Sol

Não posso precisar a época em que essa história aconteceu. Só sei que se passou há séculos no Oriente, talvez no Japão.

Flor-do-campo era uma moça que vivia com a mãe e dois irmãos numa cidade muito bonita, à beira de uma região montanhosa. Um rio límpido descia a montanha e cruzava a cidade por trás. Nem Flor-do-campo nem seus irmãos sabiam ler ou escrever. Viviam da terra, como tinham feito seus antepassados.

Flor-do-campo não tinha pretendentes, embora fosse bonita, nem fora prometida à ninguém. Mas isso não a incomodava. Vivia cada dia de uma vez, saboreando a beleza daquele lugar, de onde nunca tinha saído. Seus irmàos eram sérios e severos, e sua mãe, conciliadora.

Um verão trouxe à Flor-do-campo tudo o que ela jamais buscara ou cobiçara.
Não era muito comum que pessoas das cidades grandes viessem visitar aquele lugar, mas naquele verão isso aconteceu. Um artista chegara à cidade, com propósito de ficar lá por uns tempos, quem sabe, para pintar a beleza da região.

Flor-do-campo não o vira quando chegou, nem tampouco no dia seguinte. Passaram-se dias até que ouvisse sobre ele, sobre seu nome ou o que fazia. No era um um homem de temperamento difícil. Mais de uma, duas ou três mulheres do lugar tinham ido trabalhar para ele, mas nenhuma delas tinha permanecido. Exigia demais, diziam. Queria que limpassem e arrumassem a casa, fizessem sua comida, preparassem seu banho e ainda o ajudassem com todas aquelas tintas e pincéis. Nenhuma suportava.

Flor-do-campo ouviu os fatos da boca de uma das vizinhas, quieta, calada. Não emitiu nenhuma opinião, mas a história não lhe saiu da cabeça. No dia seguinte, saiu de casa para ir apanhar ervas, e ao colocar os pés fora de casa veio-lhe à mente a ideia de ir aonde No estava morando. Mesmo que não conhecesse a cidade teria descoberto seu canto. A casa estava em desordem do lado de fora, e No, ranzinza, praguejava e xingava o vento, enquanto fazia ponta em um pedaço de galho, para fazer um pincel, talvez. Flor-do-campo se aproximou lentamente, e com toda delicadeza perguntou-lhe se ele estava precisando de uma ajudante, de uma mulher para cuidar da casa. No levantou os olhos, e ao ver o rosto de Flor-do-campo, seu mau humor sumiu por uns instantes. Estava determinado a mandá-la sumir dali, ir para o inferno. Mas quando olhou para ela, seus olhos ficaram perdidos, viraram em todas as direções. Tentava encará-la, mas não conseguia. Disse então que precisava, sim, de uma ajudante, e que ela poderia começar no dia seguinte. Disse o quanto pagaria, e que ela deveria vir todos os dias. Os irmãos de Flor-do-campo, Príncipe e Leão, não gostaram quando ela disse que iria trabalhar para aquele homem, principalmente porque ela era solteira. Mas a mãe interveio, disse que eles precisavam de dinheiro.

Flor-do-campo não se achava muito preparada para o desafio, mas conseguiu fazer tudo o que No queria. Ele não era exigente com detalhes, mas não gostava de esperar. Se designava uma tarefa, tinha de ser feita imediatamente. Se precisava de um objeto, tinha de estar à mão. Suas refeições podiam esperar por ele, mas não ele por elas. Seu chá tinha que ser forte, e seu banho bem quente. Mas o mais difícil para Flor-do-campo era aprender a ajudá-lo com as tintas. No começo, tremia quando ele lhe pedia para misturar as cores ou para derramá-las na paleta. Depois foi perdendo o medo e descobriu que a melhor maneira de acertar era ir perguntando se já estava bom ou se deveria misturar mais.

No era um artista perfeito. Sabia bem as cores que queira, e como obtê-las. Também sabia exatamente o que queria retratar. Tudo parecia já sair pronto de sua mente. Às vezes sentava-se do lado de fora e fazia alguns esboços no papel, mas geralmente já os desenhava sobre a tela.

Flor-do-campo jamais tivera conhecido homem como aquele, tão inteligente, tão esperto, tão certo do que queria. E tão cheio de inspiração. Ela não sabia criar, mas sabia compreendê-lo. Ele via à sua volta a mesma beleza que ela via. Apaixonou-se por ele, ou melhor, amava-o.

A casa de No iria se povoar de quadros lentamente, mas assim que os primeiros foram pendurados, chamaram a atenção de todos que os viram. Ele não pretendia vender seus quadros a gente de poucas posses, então, algumas vezes apanhava um ou dois e saia por uns dias para vendê-los. Depois de um ano, começaram a aparecer, lentamente, pessoas de longe interessadas em comprar seus quadros. Pessoas bem vestidas, acompanhadas de seus empregados.

Flor-do-campo tentava esconder até de si mesma o que sentia por No, mas, com o tempo, não conseguia mais. Passou a cuidar mais de sua aparência, arrumar melhor as roupas, ajeitar melhor o cabelo. Não se dava conta da armadilha que a esperava.

Um dia, a paixão o amor e o desejo a arrebataram por completo, e ela então prendeu os cabelos da maneira mais bonita que sabia, como uma moça se arruma para o namorado. Fez uma trança com uma mecha de cabelo e deixou-a caída sobre o peito. Naquele dia, No mostrou sua outra face. Não conseguiu se concentrar na pintura, jogou o pincel na mesa e andou até Flor-do-campo. Jogou no chão o que ela segurava, e agarrou-a com toda a força que possuía. Começou a beijá-la e a tentar tirar sua roupa como um bicho no cio, e tão rápido que ela nem teve tempo de se afastar ou dizer uma palavra. Flor-do-campo tentou sair dos braços dele, mas ele era muito forte. Começou então a pedir a ele que parasse, a dizer que era uma moça honrada, implorou-lhe que parasse com aquilo, começou até a chorar, mas ele não lhe ouvia, agarrava-lhe com mais força. Flor-do-campo, horrorizada, tentou afastá-lo, mas ele apanhou um dos potes e bateu-lhe na cabeça. Ela desmaiou por alguns instantes. Quando acordou, No já estava sobre ela, semi-despida, beijando-a, tocando-a, e ela nada mais pode fazer. No segurava seus braços e beijava-a, até que ela começou a sentir desejo. Desejo, vergonha e tristeza. Porque não era assim que ela esperava ser tratada. Inocente, tinha se embelezado na esperança de atrair seu amor. Não era assim que ela queria fazer amor com ele pela primeira vez, rendida como um animal, aprisionada como uma fera, sem ter sequer desfrutado um olhar de desejo. Nem lhe era permitido possuir tais desejos. No era o dono do desejo. Ele a quisera. Ele a tivera. E ponto final.

Flor-do-campo tentou vestir-se o mais rápido que pode, e fugiu. Saiu correndo, chorando, arrependida por ter-se mostrado. Jamais imaginaria que isso iria acontecer. Essa era a face de No que ela não conhecia. Chegou em casa aos tropeços, aos soluços, sem fôlego, sem ar. A mãe tentou falar com ela, mas correu para o quarto, sentou-se no chão e chorou mais. Chorou e se desesperou. A mãe não entendia o que estava acontecendo, mas os irmãos, ao vê-la com os cabelos e as roupas desarrumados, logo perceberam do que se tratava. Começaram a gritar com ela, a amaldiçoá-la e a dizer que aquilo era um castigo por ela desobedecido. Apontavam-lhe o dedo e a chamavam de desonrada. Ela era a culpada de tudo, a vergonha da família.

Flor-do-campo não retornou mais à casa de No, que voltou à desordem de antes. Ele tentou se arranjar como podia, mas era muito difícil para ele continuar sem sua ajuda. Ficou meses sem pintar. Bebeu mais do que devia. Então decidiu ir falar com ela. Ao chegar à casa de Flor-do-campo, viu-a de longe, varrendo a porta. Sua barriga estava enorme. No parou. Seu coração disparou. Não acreditava no que via. Afora entendia porque o tinham olhado de maneira diferente. Levou as mãos ao rosto. Suou frio. Deu meia volta e saiu correndo. Trancou-se em casa. Bebeu até perder a noção de si. Acordou no dia seguinte, no chão. Batiam à porta. Tinha certeza que eram os irmãos de Flor-do-campo. Era um mensageiro com uma encomenda de um rico senhor: uma quadro para ser levado dentro de um mês, que seria ofertado como presente de casamento a um nobre. No teria que trabalhar, fosse como fosse.

Duas semanas depois, Flor-do-campo sentiu as dores do parto. A mãe aqueceu água e colocou-a numa tina a seu lado, pronta a assisti-la no parto. Príncipe e Leão não a deixaram ficar. Tiraram a mãe do quarto à força, arrastaram-na para fora da casa, e disseram que Flor-do-campo teria que ter o filho sozinha, que nenhum deles iria ajudá-la naquela desonra. Os três ficaram fora da casa. Quanto mais a mãe chorava, mais os filhos criticavam a ela e à irmã.

Flor-do-campo conseguiu terminar o parto sozinha. Uma menina. Pequeno Raio-de-Sol. Ela vestiu-a, embrulhou-a, deitou-a a seu lado e adormeceu, exausta. Depois de um tempo, os irmãos deixaram a mãe entrar. Ao lado da tina cheia d’água vermelha estavam as duas. A mãe surpreendeu-se, e retirou a tina. Os irmãos praguejaram, revoltados.

Pequeno Raio-de-Sol nasceu quase em silêncio. Chorou baixinho, como se soubesse que não tinha permissão para nascer. Tampouco tinha males. Como se soubesse que era uma criança pobre, sem direito a adoentar. Depois de uns dias, Flor-do-campo viu-se obrigada a fazer o que não queria. Foi procurar No. Apareceu de manhã, bem cedo, com a bebê nos braços, com o mesmo passo lento e o mesmo jeito delicado. Perguntou se podia voltar, pois tinha que sustentar a menina. No passou os olhos pelas duas rapidamente, e novamente, com o olhar perdido, disse que sim. Flor-do-campo procurou uma caixa em que pudesse improvisar um berço. Trabalhava e cuidava de seu Pequeno Raio-de-Sol. Às vezes, No a chamava e ela não atendia. Ele então ia até ela, irritado, e a encontrava amamentando. Baixava os olhos e saia, envergonhado.

Flor-do-campo jamais batia em sua menina ou gritava com ela. Sempre explicava que tinha de trabalhar, e a deixava no chão com os brinquedos, alguns deles improvisados. Pequeno Raio-de-Sol parecia entender tudo. Não tentava grandes travessuras, nem se afastava. De vez em quando, sorria para No. Ele desviava o olhar, desconcertado.

As encomendas de quadros foram aumentando, e quando Pequeno Raio-de-Sol tinha quase dois anos, No recebeu um convite. Um convite para ir a um grande centro de artes. Seu sonho chegara.

No ia partir dias depois do convite. Mas quando estava arrumando tudo, a consciência apareceu. Disse para Flor-do-campo parar com tudo, que ele não iria mais, que ele não merecia nada bom depois de tudo que tinha feito à ela. Pegou todos os pincéis, inclusive os que ele próprio tinha feito, e quando ia quebrá-los, Flor-do-campo segurou suas mãos:
“Não faça isso, por favor. Você é um grande artista. Não deve abandonar sua arte, deve mostrá-la a todos.”

No abraçou-a, pediu-lhe que o perdoasse, disse que só poderia partir se ela o perdoasse. Flor-do-campo balançou a cabeça. Apenas deixou as lágrimas descerem. Fechou as portas e janelas e ficou com No. Naquela noite, ela e Pequeno Raio-de-Sol não foram para casa.

Quando No estava partindo, quase toda a cidade veio vê-lo, despedir-se dele. A grande partida do grande artista. Dentro da carruagem, no último momento, No chamou Pequeno Raio-de-Sol com um gesto. A pequena correu até ele. Ele lhe disse umas palavras que ninguém ouviu, e ela balançou a cabeça afirmativamente e o abraçou. Ele a beijou, e partiu.

Flor-do-campo tinha desejado, do fundo de sua alma, que No as tivesse levado consigo. Mas já conhecia No. Sabia que ele não faria isso.

Quase dois anos se passaram sem que No retornasse ou mandasse notícias. Então começaram os tormentos de Flor-do-campo. Um de seus vizinhos, Erva-do-mato, começou a pressioná-la, perguntando quando No iria voltar e se casar com ela. Ela dizia que não sabia quando, mas que ele voltaria.

Erva-do-mato a atormentou por meses, e começou a induzir os vizinhos a fazerem o mesmo. Dizia a todos que ela era desonrada, e que devia partir com a filha para a casa de mulheres. Flor-do-campo fugia de suas agressões, até que um dia não conseguiu vencê-lo. Ele entrou em sua casa, entregou-lhe um embrulho de pano e disse:

“É isto ou você e sua filha vão para a casa de mulheres. Você tem até amanhã para decidir.”

O coração de Flor-do-campo gelou. A adaga era mais fria que a morte.

Flor-do-campo saiu de casa bem cedo e deixou seu Pequeno Raio-de-Sol dormindo. No começo da tarde foi encontrada na beira do rio. Seus cabelos negros ondulavam com a água do rio. Os olhos abertos. A adaga no ventre condenado. Raio-de-Sol não iria mais para o prostíbulo. Agora era órfã.

No voltou depois de um ano. Era um outro homem. Tinha uma aparência serena. Chegou sorrindo. Pequeno Raio-de-Sol não o reconheceu, mas a avó disse que aquele era seu pai. No abraçou a menina. Ainda abraçado a ela, perguntou por Flor-do-campo. A mãe baixou os olhos e saiu. No não compreendeu. A esposa de Príncipe contou-lhe o que havia acontecido. A No só restou ir à beira do rio e chorar.

Erva-do-mato não acreditou quando lhe contaram sobre Flor-do-campo. Durante muitos meses passava horas vagando durante o dia ou à noite. Até que, um dia, se ajoelhou à beira do rio, com a adaga na mão. A alma de Flor-do-campo lhe apareceu. E pediu-lhe que não fizesse aquilo, que procurasse ajudar outras pessoas. Ele prometeu a ela que o faria.
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Flor-do-campo ainda não reencontrou seu Pequeno Raio-de-Sol.

Erva-do-mato tenta se equilibrar entre dois extremos: abraçou o idealismo, e sempre que pode, procura realizar trabalhos comunitários. Ainda marcado pela consciência, deverá criar e educar os filhos que o destino lhe trouxer de volta.

No, corroído pela culpa, e protegido pela imagem de honestidade e integridade que o reveste, envelhece mais a cada dia, cercado pelos tesouros que continua acumulando.

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