Visita
particular
Acabo de chegar de uma viagem.
Fui à exposição de obras de Picasso, e não podia imaginar o que acabaria
encontrando. Obrigaram-me a cuspir o chiclete, com medo de que eu pudesse
atentar contra alguma obra. Só esqueceram de mandar um dos monitores dentro do
próprio evento fazer o mesmo. Tudo bem, injustiças são parte deste tempero
amargo que a vida às vezes serve.
Nem o café que tomei depois nem
as conversas que tivemos depois conseguiram apagar as sensações das obras. Devo
confessá-las para aliviar-me da culpa de sentir-me tão invadida por elas, de
sentir-me tão invadida por aquelas imagens, por aquele mundo.
A primeira obra que observei
causou-me arrepios. Pensei que fosse sugestão, emoção pura e simples diante da
tela de um mestre, mas o mesmo aconteceu diante de quase todas as telas,
principalmente aqueles que retratavam pessoas. Vou descobrindo então como a
fúria do jovem Pablo vai transformando as formas, os rostos, os corpos, as
paisagens. Os arrepios se repetem diante de cada quadro, como se a mente do
mestre estivesse aberta ali para mim, só para mim. Que escândalo! Que
atrevimento, Monsieur Picasso! Mostrar-me suas sensações, seus sentimentos,
diante de todas aquelas pessoas! Homens, mulheres, jovens, casais de namorados,
pais de família, mães e avós empurrando carrinhos com bebês, crianças animadas,
todos cercados de monitores uniformizados. E o senhor mostrando seus
sentimentos pra mim! E eu, ignorando todos, maravilhada com seus suspiros, seus
gritos, seus rancores, seus temores... e seus amores. Preciso confessar que
senti inveja de todas as mulheres que retratou. Ah, mas a minha vingança, ou
melhor, minha recompensa, estava diante dos meus olhos, diante de todos! Era
como se cada imagem pudesse me transmitir os sentimentos sem palavras. Não me
pergunte exatamente qual emoção pertencia a qual quadro. Só sei que as senti,
mesmo que houvesse um rapaz passando na minha frente, querendo chegar mais
perto. Elas vinham até mim, e como se fossem fantasmas me tocavam, me chamavam
sem saber meu nome e se derramavam sobre mim em forma de arrepios. Foi como se
o mestre tivesse deixado a chave de seu diário pendurada perto da porta e eu a
tivesse roubado. O mundo todo reconstruído em entalhes, em pinceladas, em
traços, em contornos. O mundo que roubara. Seu mundo roubado. O mundo que eu
roubava.
Sinto um torpor que vai
aumentando a cada andar, e quando chego ao mais alto não consigo olhar para
baixo. Preciso sentar, recobrar os sentidos diante do espelho d’água. Meu amigo
quase descobre meu crime. Pergunta-me se estou me sentindo mal. Não, apenas
preciso recuperar o ar antes de ouvir as últimas mensagens do cúmplice. Porque
já não há mais culpados. Nem há mais crime. Apenas cúmplices. Aqueles que como
eu roubaram a chave. Nas últimas mensagens, sinto somente uma bela despedida:
“Agora você já viu minha mente. Já fez amor comigo. Pode ir embora.” Poderia
ter ficado mais tempo lá, mas o presente já me tinha sido dado. Tinha que
retornar à porta e devolver a chave. Meu amigo tem de me amparar. Lá embaixo
estarei mais forte.
08.02.04
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