Até quase metade
Em seu trabalho “Teu pai com uma pistola”, Thiago Mattos
marcou seus poemas com números. Não são números inteiros, são números com casas
decimais e centesimais. Sua escolha, a de marcar com números o que se poderia
marcar com títulos, cria uma ordem, dá um desenho cronológico aos versos. Sua
numeração evoca o tempo, como se fossem décimos e centésimos de intervalo entre
os poemas. E o que se mede mais e mais ilusoriamente que o tempo?
Os versos de Thiago cumprem o que prometem: “poemas decimais
sobre abraços”. A promessa é confirmada
nos últimos versos: “despedida/o abraço mais triste do mundo”. A descoberta do que significam esses abraços
é missão do leitor. Assim como o encontro com seus outros temas/matizes/histórias. Estamos
diante de uma voz que conta histórias sem narrativas, mas “abraça” em temas.
Afinal, é um livro sobre abraços, não? Suas histórias têm um elemento-paisagem
que perpassa os poemas: o córrego, o rio, as aguas que correm.
As histórias desse cantar poético trazem dois personagens
que se ressaltam: o filho e o pai. Ou serão a criança e o adulto, o menino e o
homem? Os poemas têm presenças femininas também, como a mãe e a avó, mas é
entre o garoto e o homem que os conflitos acontecem. Voltamos ao título?
Embora a pistola esteja no título, são outras as armas
que des/ferem mais em seus versos: a faca, a adaga. Esta última aparece num dos
momentos mais líricos do livro, em que se pergunta “quando serás clara,/clara
manhã empunhando uma adaga?” O sangue derramado, outro matiz, aparece quase sempre
acompanhado do coração, como que desnudando o sofrimento. A tríade coração/morte/sangue se intercala,
se interpõe, às vezes dois deles juntos ou se opondo, dialogando.
Faço minha apreciação com perguntas porque acredito que
instigar está mais próximo daquilo que os poetas buscam. Os versos de Thiago
provocam, contrastam, criam e reclamam com poemas curtos e intensos, e com
poemas longos que abrigam poemas curtos em seu interior; poemas gêmeos
não-univitelinos, todos numerados. E um momento de prosa poética, quase na
metade do trabalho, significativo para um trabalho que possui uma numeração até
quase metade dos algarismos inteiros.
A metalinguagem também se diz presente nesse trabalho. Porque
os poetas precisam falar da poesia. Para Thiago, a poesia é a “pedra, pedra
viva”, é pó, é silêncio. E o poeta sempre se perguntando, “eu estava na minha
cabeça/me imaginando/falando numa entrevista/(como me imagino sempre)”. Os
poetas estão sempre se entrevistando?
Há que se destacar também um momento baudelairiano, ou
melhor, milleriano, e outro à la cummings: “uma garrafa/vazia/de azeite”.
Não há como não se identificar com as histórias de
saudade que Thiago traz em seus versos: pessoas ausentes, coisas ausentes,
momentos que não retornam, pessoas que não retornam. A ausência doída, a
ausência necessária, a fuga.
De todos os tons da obra, o mais delicado é a presença
das asas, que reproduzo apenas em parte: “eu te dei um capacete, deus/e você me
deu uma asa/não um par de asas, mas uma asa[...]”. E sua veia visionária
decreta: “é preciso olha para as coisas como/se despíssemos um manequim”.
“Teu pai com uma pistola” tem, acima de tudo, um caráter
de primeira pessoa, uma primeira pessoa que reina (mas não absoluta) sobre as
vozes e tons que Thiago imprime à sua poesia. Os poemas, costurados pelos
décimos e centésimos de segundo, não escapam dos abraços que o poeta retrata e
professa até quase metade, até quase metade dos algarismos.
por Maiaty S. Ferraz
por Maiaty S. Ferraz
Link para “Teu pai com uma pistola”:
http://www.confrariadovento.com/editora/catalogo/item/71-teu-pai-com-uma-pistola/71-teu-pai-com-uma-pistola.html