sexta-feira, 8 de janeiro de 2016

Moldura

Moldura

Parou diante do mar. O vento frio roçava-lhe o rosto como uma nuvem descida do céu, envolvendo-lhe, embriagando-lhe. Permanecia imóvel, sentia cada golfada de ar como se revirasse por dentro, mas não se movia. Apenas olhava o mar. Olhava para aquele mar como quem olhava para uma pessoa. Olhava aquele mar como quem falava com uma pessoa. Aquele era o mar mais cristalino que já havia visto. E o silêncio à sua volta fazia parecer que o mundo todo tivesse sumido, como se todos tivessem saído correndo atrás de algo ou de alguém, ou se algo terrivelmente assustador tivesse afugentado todos. Nada, ninguém, nenhum barulho além das ondas para fazer com que saísse dali. E eram exatamente as ondas que lhe atraíam. Porque via nelas o que já tinha vivido. As cenas os fatos, os rostos, os erros, os acertos... E ouvia delas o que já havia dito. O que havia declarado, declamado, confessado, professado, mentido, enganado, fantasiado... O que havia criado para si. O que tinha desejado viver. O que tinha planejado calculadamente, e tinha realizado em cada gesto, em cada palavra. O que tinha amado, e o que tinha desprezado. Estavam ali os sorrisos mal dados e os sinceros, os abraços com ardor e os com asco, os carinhos concedidos e os forçados. As vozes ouvidas e as ignoradas, as que apreciara e as que julgara vazias. Estavam todos lá, no ir e vir das ondas: parentes, patrões, paixões, amigos, inimigos, amores, companheiros. Os rostos marcados em sua memória, os que veria eternamente, mesmo que a luz lhe falhasse. As ondas não lhe deixariam sair dali, até que tudo estivesse devidamente medido, ponderado e pesado. Um acerto de contas? Sim e não. Afinal, quem ousaria roubar de si mesmo? Cada minuto para ser admirado. Os segundos vividos e os desperdiçados. A cada onda, o estômago revirava. Como num pós-parto, a sensação de vazio só poderia dar lugar a novos estados.... Um novo coração? Talvez, se o primeiro fosse tocado.

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